quarta-feira, 4 de julho de 2018

Não existe pecado ao sul do Equador


"Antes da Redução, a aldeia era composta de gente muito ignorante, que nem sequer tinha uma lista pequena para o Bem e o Mal e, na realidade, nem mesmo dispunha de boas palavras para designar essas duas coisas tão importantes.
Depois da Redução, viu-se que alguns eram maus e outros eram bons, apenas antes não se sabia. Mulher má não quer ir à doutrina, quer andar nua, não quer que o padre pegue na cabeça do filho e lhe besunte a testa de banha esverdeada, dizendo palavras mágicas que podem para sempre endoidecer a criança. Feio, feio, mulher má.”

O excerto acima é do livro “Viva o Povo Brasileiro”, do escritor João Ubaldo Ribeiro.

Chico Buarque e Ruy Guerra são autores da música “Não existe pecado ao sul do Equador” que fazia parte da peça sobre Calabar, proibida pela censura da ditadura militar brasileira.

Não existe pecado do lado de
baixo do Equador
vamos fazer um pecado, rasgado
suado a todo o vapor
me deixa ser seu escracho
capacho, teu cacho
um riacho de amor
quando é lição de esculacho
olha aí, sai de baixo
que eu sou professor.

Tanto a peça quanto o livro foram escritas nos mesmos “anos de chumbo” que amordaçaram a cultura brasileira.
E ambas tem muito a ver com o povo brasileiro.

O livro conta de forma metafórica a sua história repleta de epsódios tragicômicos que refletem a alma brasileira “para o bem e para o mal”.

A peça “Calabar: o elogio da traição” denuncia o autoritarismo do momento através de outra leitura da vida do suposto traidor Calabar, retratado como uma pessoa interessada no “bem” do povo brasileiro em formação.

A proibição é justificada pelo caráter “antinacionalista” da peça já que Calabar teria ajudado os invasores (somente eles) holandeses.

O que me ocorre com a leitura do livro e ouvindo a canção é que o “o bem e o mal” tão presentes na moral oficial e popular é mais discursiva do que prática.

Assim, pessoas interessadas no bem do povo podem ser acusadas de fazer o mal ao Brasil (leia-se: aos poderosos de qualquer época).

Não existe pecado do lado de baixo do Equador” canta a holandesa de Calabar que, muito provavelmente, escapou de ser comida pelo caboclo Capiroba, personagem canibal do romance de João Ubaldo, que tomara gosto pela carne branca holandesa.

Se hoje perdemos o gosto pela carne humana assada não perdemos o gosto pelos pecados da carne apesar de todo falso moralismo vigente.

Fiquemos pois com a canção de Chico e Ruy Guerra interpretada por Ney Matogrosso que encarna tão bem a alma brasileira "para além do bem e do mal":


Porto Alegre, 4 de julho de 2018.
Imagem: Google
Edu Cezimbra

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