sábado, 1 de junho de 2019

Um tango argentino

sosa-ata
Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui
Por Eduardo Sejanes Cezimbra

Dias atrás falava a um amigo chileno ligado às artes que o tango, música tradicional argentina, foi criado pelos afrodescendentes do Rio de la Plata, em Buenos Aires, ao que ele me redarguiu que sabia da influência francesa em sua origem.

Compreensível o seu ceticismo quanto à minha informação, já que para o imaginário social sul-americano nem negros há na Argentina... “ Pero que los hay, los hay”... Mas isso fica para depois.

O tango surgiu da combinação da milonga rural com o ritmo e os passos de dança dos afrodescentes argentinos, segundo  informa o antropólogo da Universidade de Buenos Aires, Cláudio Spiegel.

E aqui tocamos neste ponto pouco falado, que foi ou é o processo de colonização argentino, que preconceituosamente rotulou de bárbaros, atrasados, selvagens e desordeiros toda uma população que habitava o pampa e o sul da Argentina.

Uma estratégia de genocídio e de posterior invisibilização desta gente negra, indígena e mestiça que peleava e convivia como nos conta José Hernández, no poema épico “Martín Fierro” e Jorge Luis Borges com a “Milonga de los morenos”, musicada pelo compositor gaúcho Vitor Ramil:

alta la voz y animosa / como si cantara flor, / hoy, caballeros, le canto / a la gente de color.
marfil negro los llamaban / los ingleses y holandeses / que aquí los desembarcaron / al cabo de largos meses.
en el barrio del retiro / hubo mercado de esclavos; de buena disposición / y muchos salieron bravos.

Haviam negros na Argentina, portanto, mas o que aconteceu com eles? Foram enviados para a Guerra do Paraguai e quem não morreu nos campos de batalha sucumbiu devido epidemias que grassavam nos bairros pobres de Buenos Aires.

Aliás, basta atravessar o Rio de la Plata e vamos encontrar, na Banda Oriental do Uruguai, um ritmo também oriundo da África, denominado candombe, tocado pelos afrodescendentes uruguaios em seus tablados e murgas.

Esta contraposição dos povos originários ou crioulos como atrasados com a elite oligárquica argentina autodeclarada moderna, que imitava os jardins parisienses, a arquitetura francesa e promovia óperas é um caso típico de colonização cultural. Para quem não conhece a Argentina pode ser surpreendente o ressentimento declarado dos moradores provincianos em relação ao “portenho”, morador da metrópole.

Também não é por mero acaso que a expulsão das antigas populações indígenas e crioulas do pampa e da Patagônia foi denominada “colonização” feita a partir de “colonos” europeus, especialmente italianos e alemães.

O que não impediu que estas populações resistissem, apesar de invisibilizados e expulsos de seus territórios tradicionais, com suas tradições e seu rico folclore,  como podemos apreciar nas figuras mais conhecidas de Mercedes Sosa e de Atahualpa Yupanqui.

A Argentina, embora sua oligarquia não goste é muito latino-americana, sim, e tem um importante papel na integração da América do Sul, através do Mercosul e de suas raízes indígena, africana e crioula.

Publicado originalmente em Ecologia dos Saberes


Porto Alegre, 1º de junho de 2019.

Imagem: Google

Edu Cezimbra

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